Pelo instinto primitivo que nos governa, sentir medo de algo deveria nos afastar. No entanto, frequente nos aproximamos com entusiasmo. Filmes, livros, séries e jogos de horror mobilizam legiões de fãs dispostos a enfrentar monstros, espíritos, maldições e ameaças sobrenaturais, não para fugir, mas para experimentar o encantamento do medo.
O horror fantástico, aquele que emerge da mistura entre o sobrenatural e o psicológico, entre o imaginário e o simbólico, é uma das formas mais persistentes e populares da narrativa contemporânea. Mas o que há no medo que tanto nos atrai?
Este artigo propõe uma análise interdisciplinar do horror fantástico, combinando teoria literária, psicologia, estética e estudos culturais. Partindo de autores como Lovecraft, Edgar Allan Poe, Shirley Jackson e Jordan Peele, e teorias de Todorov, Freud e Clive Barker, busca-se compreender por que o horror nos fascina e como ele opera como forma de expressão simbólica de desejos, traumas e ansiedades coletivas.
Ao contrário do senso comum, que vê o medo como fuga ou sadismo, propõe-se aqui que o horror é um ritual estético de enfrentamento e reorganização do desconhecido.
I. Entre o estranho e o perturbador
Tzvetan Todorov (1975), em sua teoria clássica do fantástico, define o gênero como aquele que provoca hesitação entre uma explicação racional e uma sobrenatural para os acontecimentos. O horror fantástico, por sua vez, é o campo em que essa hesitação se resolve em favor do sobrenatural, mas sem perder sua capacidade de inquietar.
Por sua vez, Rosemary Jackson (1981) destaca que o fantástico é uma literatura da transgressão, daquilo que irrompe para desestabilizar a ordem. O horror, portanto, seria a forma mais intensa dessa transgressão, pois fere diretamente o corpo, o tempo e o real.
O horror fantástico é marcado por presenças que não deveriam existir: entidades inomináveis (Lovecraft), casas mal-assombradas (Jackson), duplos perturbadores (Poe), máscaras ritualísticas (Peele). Esses elementos nos colocam diante do estranho familiar (Unheimlich), conceito elaborado por Freud (1919) para descrever aquilo que, sendo parte de nós, é negado e retorna como ameaça. O horror não apenas assusta, mas desmascara o que preferimos não ver.
No cinema contemporâneo, o trabalho de Jordan Peele em Corra! e Nós é exemplar: o terror não vem de fantasmas, mas do racismo estrutural e da desigualdade, transformados em signos fantásticos e inquietantes. A realidade social é transfigurada em pesadelo, como já fazia o horror cósmico de Lovecraft, que canalizava os medos da modernidade e do desconhecido cósmico.
II. Prazer e pavor: o paradoxo do medo
Mas por que buscamos experiências que nos causam medo? A psicologia cognitiva e a teoria estética oferecem pistas. Bruno Bettelheim (1976), ao analisar os contos de fadas, sugere que histórias assustadoras ajudam as crianças a lidar com medos inconscientes. Algo semelhante ocorre com o horror fantástico: ele nos oferece um ambiente controlado onde é possível confrontar o pavor e sobreviver.
Clive Barker, em seu Livros de Sangue (1984), afirma que o horror é uma forma de arte que nos aproxima do sublime: o encontro com o incompreensível, o limite da experiência humana. Há prazer na vertigem, na contemplação do abismo, desde que se saiba que ele está contido pela página ou pela tela. O horror, assim, realiza uma função catártica: ele canaliza tensões psíquicas, sociais e existenciais por meio da forma narrativa.
Além disso, o horror fantástico também atua como ritual coletivo. Sessões de cinema de terror, maratonas de Halloween, comunidades de fãs e fóruns dedicados a criaturas sobrenaturais criam laços afetivos e culturais baseados na partilha do medo. O susto se transforma em riso, em empatia e até em resistência simbólica. Em tempos de incerteza, o horror nos permite dizer: há algo pior, e eu posso enfrentá-lo.
III. Gênero, raça e política no horror
O horror fantástico sempre foi um espaço de representação e disputa simbólica dos corpos: quem morre, quem sobrevive, quem é o monstro? Essa dimensão política do gênero tem ganhado destaque nos estudos culturais, que identificam o horror como espelho das ansiedades sociais em torno do outro, seja ele racializado, feminino, queer, ou socialmente marginalizado.
Mulheres historicamente foram representadas como vítimas ou bruxas, mas nas últimas décadas têm ocupado posições centrais como sobreviventes (final girls), caçadoras ou figuras de vingança. O horror queer, por sua vez, ressignifica monstros e mutações como metáforas da experiência LGBTQIA+, como em Entrevista com o Vampiro (Anne Rice) ou Titane (Julia Ducournau).
Novamente, a narrativa de Jordan Peele é particularmente relevante nesse contexto, pois insere o horror dentro do debate racial contemporâneo. Em Corra!, seu primeiro grande sucesso do gênero, a operação do horror não está nos gritos, mas na desconfiança crescente do protagonista negro diante de uma família branca aparentemente progressista. O horror é social, mas a linguagem é fantástica: hipnose, cirurgia mental, apropriação corporal. O medo se converte em denúncia.
Considerações Finais
O horror fantástico nos atrai porque nos assusta, mas também porque nos revela. Ele é uma linguagem simbólica de alta potência, capaz de encenar medos íntimos e coletivos, de exorcizar traumas e de questionar normas. Ao unir o estranho ao familiar, o horror desestabiliza a segurança do cotidiano e nos força a reconfigurar nossas certezas sobre o corpo, a identidade, a sociedade e o próprio real.
Ao contrário da ideia de que gostamos de horror por masoquismo ou por curiosidade mórbida, este artigo defende que o medo fantástico é uma forma sofisticada de imaginação cultural, profundamente conectada com os dilemas éticos, políticos e afetivos do presente.
Assistir a um filme de terror ou ler uma história de horror não é apenas buscar susto, mas também aceitar um convite para atravessar o desconhecido e retornar transformado.
Matheus Prado é professor, escritor, cineasta e crítico de cinema. Atualmente cursa um mestrado e Letras, com foco em Literatura. Acredita que a vida é um mar profundo e que devemos nos aventurar além da superfície. Escreveu e dirigiu dois longas-metragens e vários curtas.
