Entre o mágico e o real, existe um território narrativo ambíguo, profundamente fértil para a literatura: o espaço onde o maravilhoso se insinua no cotidiano, sem alarde, sem espanto, sem explicação.
É nesse limiar que o Realismo Mágico se consolida como um estilo distintivo da literatura latino-americana do século XX, cuja principal característica é a convivência naturalizada entre o insólito e o mundano. Ao lado dele, mas com identidade própria, emerge um tipo de fantástico filosófico-existencial, cultivado por autores como Murilo Rubião no Brasil.
Este artigo propõe uma comparação crítica entre as obras de Gabriel García Márquez, ícone do realismo mágico colombiano, e Murilo Rubião, mestre mineiro do conto fantástico moderno. Embora muitas vezes confundidos ou agrupados sob o mesmo rótulo, seus textos operam com estratégias narrativas, funções simbólicas e implicações filosóficas distintas.
Com base nas teorias de Todorov (1975), Jackson (1981), Ángel Flores (1955) e Luis Leal (1967), investigamos como cada autor articula o estranho no texto — e o que isso revela sobre suas visões de mundo.
I. O extraordinário como cotidiano
Gabriel García Márquez é frequentemente citado como o maior representante do realismo mágico latino-americano, cuja definição clássica é dada por Ángel Flores (1955) como a inclusão do maravilhoso dentro de uma estrutura realista, sem causar surpresa nas personagens. Em Cem Anos de Solidão, por exemplo, uma chuva que dura quatro anos, a ascensão de Remedios aos céus ou a praga da insônia são eventos integrados à vida cotidiana de Macondo, sem provocar dúvida ou hesitação.
A magia não é explicada, nem precisa ser. Como defende Luis Leal (1967), o realismo mágico não busca justificar o maravilhoso, mas sim aceitá-lo como parte da experiência humana, especialmente nas culturas em que o mítico e o religioso ainda permeiam o imaginário coletivo. Em Márquez, o insólito é um modo de habitar o mundo. Uma lente narrativa que expressa a complexidade da história latino-americana, marcada pela colonização, pela violência e pelo sincretismo cultural.
Assim, o realismo mágico funciona como estratégia político-poética: subverte a lógica ocidental moderna, racional e linear, substituindo-a por uma lógica mítica, cíclica e polifônica. Em Macondo, o tempo dobra, os mortos conversam, o impossível acontece — e tudo isso se inscreve numa visão de mundo que recusa a separação radical entre razão e imaginação, vida e mito, natureza e cultura.
II. A dúvida como essência
Murilo Rubião, por sua vez, trabalha o fantástico puro, nos moldes definidos por Todorov (1975): aquele em que o leitor (e muitas vezes o personagem) hesita entre uma explicação natural e uma sobrenatural para os eventos narrados. Em contos como O Pirotécnico Zacarias, Teleco, O Coelhinho ou A Casa do Girassol Vermelho, encontramos personagens que enfrentam situações absurdas — reencarnações em animais, desaparecimentos inexplicáveis, duplos enigmáticos — mas sem jamais obter respostas.
O fantástico de Rubião não se ancora no mítico nem no coletivo, mas sim no indivíduo solitário e desamparado, exposto ao absurdo da existência. Em sua obra, o insólito não é celebração do mistério, mas expressão de uma angústia metafísica, uma perturbação ontológica diante de um mundo que escapa à razão e à linguagem.
Como observa Rosemary Jackson (1981), esse tipo de fantástico é profundamente moderno, pois revela o colapso das certezas e o vazio deixado pela perda de sentido.
Rubião recusa qualquer explicação lógica ou mística. Suas narrativas operam por acúmulo de incoerências, levando o leitor a um estado de suspensão e desconforto. Não há reconciliação entre o real e o irreal, apenas a constatação de que o sujeito está à deriva num mundo indiferente, onde as leis do possível são instáveis.
Se Márquez cria uma realidade mágica habitável, Rubião escreve o impossível como sintoma de uma crise de identidade, tempo e ser.
III. Estratégias narrativas e implicações culturais
A distinção entre os dois autores não é apenas estética, mas também cultural. O realismo mágico nasce de um contexto latino-americano de resistência ao colonialismo epistêmico e à modernidade europeia. Como aponta Sylvia Molloy (1990), trata-se de uma “poética da hibridez”, que inscreve no texto a multiplicidade de vozes, tempos e crenças da América Latina.
Márquez escreve com os olhos voltados para o continente: sua magia é genealogia coletiva, sua linguagem é barroca e sua política é tecida na memória. Já Murilo Rubião escreve num Brasil urbano, introspectivo e existencialista. Sua narrativa é sintética, minimalista, irônica.
Ao contrário de Márquez, que multiplica personagens e gerações, Rubião isola seus protagonistas, mergulhando-os em dilemas subjetivos, sem saída. Sua obra dialoga com a tradição do conto moderno, de Kafka a Borges, e se aproxima mais da angústia do absurdo do que da celebração do mágico.
Ambos, no entanto, compartilham uma desconfiança da realidade empírica e um interesse pela lógica do sonho, do símbolo e do inexplicável. Suas obras mostram que a literatura fantástica, sob diferentes roupagens, continua sendo uma forma privilegiada de investigar aquilo que escapa à lógica e que, por isso mesmo, nos define como humanos.
Considerações Finais
Distinguir realismo mágico e fantástico puro é mais do que uma questão de terminologia: é entender diferentes formas de relação entre o ser humano e o mistério. Gabriel García Márquez e Murilo Rubião representam dois polos dessa cartografia do insólito. O primeiro afirma o maravilhoso como fundamento cultural e poético da América Latina; o segundo expressa a inquietação filosófica do sujeito diante do inexplicável.
Ambos nos lembram de que a literatura fantástica não é apenas evasão ou entretenimento, mas um dispositivo crítico de pensamento. Seja pela naturalização do mágico ou pela hesitação diante do absurdo, suas narrativas nos obrigam a ver o mundo com olhos que não se satisfazem com o visível.
Matheus Prado é professor, escritor, cineasta e crítico de cinema. Atualmente cursa um mestrado e Letras, com foco em Literatura. Acredita que a vida é um mar profundo e que devemos nos aventurar além da superfície. Escreveu e dirigiu dois longas-metragens e vários curtas.
