A Viagem de Chihiro: fantasia expõe capitalismo, trabalho e cuidado em tempos de consumo desenfreado

Filme de Hayao Miyazaki reconstrói contos e cosmologias japonesas para refletir sobre identidades apagadas, rituais coletivos e formas de sobrevivência afetiva em meio à lógica neoliberal.

Desde Kwaidan (1964), de Masaki Kobayashi, e Ugetsu Monogatari (1953), de Kenji Mizoguchi, o cinema japonês articula tradição e modernidade por um caminho singular: convoca mitos, contos de assombração e imaginários xintoístas não para escapar do presente, mas para traduzi-lo criticamente.

Essa operação mítica atinge um grau raro de sutileza em A Viagem de Chihiro (2001), de Hayao Miyazaki. Nele, a travessia de uma menina para um balneário de deuses e espíritos funciona como rito de passagem e como ensaio sobre trabalho, consumo, perda do nome e devastação ambiental — questões centrais da virada neoliberal e do capitalismo tardio no Japão e no mundo.

Para pensar essa engrenagem simbólica, aciono três chaves teóricas complementares. Em primeiro lugar, a hesitação do fantástico formulada por Tzvetan Todorov, que descreve o limiar em que o sobrenatural se instala sem se dissolver em pura alegoria. Em segundo, a noção de fantasia como literatura (e cinema) de subversão, em Rosemary Jackson, útil para entender como o “estranho” reconfigura desejos e interditos sociais. Por fim, a “obra aberta” segundo Umberto Eco, que ilumina a ambiguidade produtiva do filme, sua recusa de fechar sentido e sua aposta em um espectador ativo.

Em diálogo com estudos de anime (Napier; Lamarre) e com a crítica antropológica dos yōkai (Foster), propomos que Chihiro opera uma mitopoética da sociedade do trabalho e do consumo: uma fábula sobre pertencimento que começa quando se perde o nome.

A Viagem de Chihiro | Créditos: Studio Ghibli

Estrutura mítica e regime do fantástico

Do ponto de vista narratológico, A Viagem de Chihiro é um caso exemplar do que Farah Mendlesohn chama de “portal-quest fantasy”: uma personagem atravessa um limiar espacial que instaura novo regime de regras e subjetividades. O túnel abandonado e o parque temático vazio, vestígios do boom econômico que não vingou, funcionam como “porta” e comentário histórico: tratam-se de ruínas do consumo, um parque do capital transformado em zona do sagrado.

A hesitação todoroviana emerge na sequência do banquete: nós, como Chihiro, não sabemos se assistimos a uma alucinação infantil ou a uma epifania xintoísta em que kami e yōkai coexistem com a paisagem urbana. O filme prolonga essa incerteza — não para relativizar tudo, mas para insistir na sobreposição de mundos.

Importa notar que, no xintoísmo, o sagrado não é transcendente; ele emana dos fluxos da natureza, dos rios, das árvores, das pedras. A animação de Miyazaki traduz esse princípio em gesto cinematográfico: a matéria treme, os espaços respiram, a comida exala, o vento dobra grama e cabelos.

Thomas Lamarre descreve esse efeito como “movimento do movimento”: a animação não imita a realidade, mas a faz pulsar. O fantástico, aqui, é também um regime ontológico da imagem.

A Viagem de Chihiro | Créditos: Studio Ghibli

A fábrica do esquecimento

O pacto de trabalho assinado por Chihiro com Yubaba é motor ético e político do filme. Ao arrancar o nome da protagonista quando “Chihiro” é reduzida a “Sen”, Yubaba encena a lógica de uma modernidade empresarial que contrata força de trabalho ao preço da subjetividade.

Na cultura japonesa, o nome (e, por extensão, a assinatura) vincula o indivíduo a sua linhagem e memória. Dessa forma, a perda do nome não é metáfora vaga. Cortar letras do nome equivale a cortar raízes. Eco ajuda a ler esse dispositivo como uma “obra aberta” de implicação: o espectador é convocado a completar a crítica do trabalho precarizado e da cultura do desempenho.

O balneário, por sua vez, é fábrica e templo. Ele organiza fluxos (de água, de dinheiro, de oferendas) e rotinas (limpeza, atendimento, cozimento), ritualizando o trabalho como liturgia do capital. A sequência do “Deus do Rio” entupido por lixo oferece um dos símbolos mais eloquentes do cinema ecológico: o kami só recupera sua dignidade quando o excesso tecnolátrico é “desentupido” por trabalho cooperativo.

Se a fantasia, para Jackson, reabre fissuras do desejo, aqui ela reabre o próprio rio e devolve à narrativa a dimensão do comum.

Kaonashi e o apetite sem rosto

Kaonashi, o “Sem-Rosto”, é avatar da economia do desejo contemporâneo. Sua voracidade mimética dramatiza um consumo sem objeto, cuja compulsão cresce quanto mais se tenta saciá-lo. Ele ingere o que vê e imita o que recebe.

Ao ser acolhido por Chihiro, Kaonashi não é punido: é deslocado. O filme recusa o moralismo simples e aposta na canalização de desejos para circuitos de cuidado e trabalho significativo (levar ervas, ajudar na ponte, encontrar uma casa com Zeniba). Em termos de teoria do fantástico, esse deslocamento congela a hesitação e a converte em ética: o monstro não some; ele encontra lugar.

Há, nesse percurso, ressonância campbelliana: a heroína não derrota um antagonista; ela reequilibra relações. Diferentemente do monomito clássico, que culmina no retorno com o “elixir”, Chihiro retorna com algo mais impalpável: um nome recosturado e uma nova disposição para o mundo.

Na leitura de Bettelheim sobre os contos de fadas, essa economia simbólica da infância opera como digestão psíquica de ansiedades. Chihiro atualiza esse esquema na linguagem da precariedade dos anos 2000.

A Viagem de Chihiro | Créditos: Studio Ghibli

Mitologia viva: kami, yōkai e políticas do visível

Miyazaki recompõe uma cosmologia xintoísta que a modernidade urbana pretendia eclipsar. Sokyo Ono descreve o xintoísmo como “o caminho dos kami”, em que forças e presenças habitam a matéria e exigem rituais de hospitalidade.

Michael Dylan Foster, ao estudar os yōkai, mostra como “monstros” funcionam como gramática do social, catalisando medos e desejos coletivos. Chihiro faz desse catálogo um léxico visual: lampiões com pernas, cabeças saltitantes, fuligem animada, aves de papel. Longe de exotizar a tradição, o filme a converte em tecnologia de atenção — um treino para ver o invisível do cotidiano.

É nesse ponto que o cinema japonês revela sua potência política ao lidar com mitos. Desde Godzilla (1954), metáfora radioativa do trauma atômico, e Onibaba (1964), fábula carnal de guerra e fome, a monstruosidade encena feridas históricas. Em Miyazaki, a ecologia e o trabalho ocupam esse lugar.

Se Princesa Mononoke (1997) já confrontava a metalurgia com a floresta, Chihiro mergulha na economia dos serviços, tão central ao Japão pós-bolha. O mito não está atrás; ele está no caixa, na cozinha, no banho. O fantástico, para usar Todorov, deixa de ser “parêntese” e vira “método”.

A ética do olhar

Uma marca de estilo recorrente em Miyazaki é o ma: lacunas de silêncio, contemplação, respiro. Essas pausas (como o trem deslizando sobre a água, o vento nos campos, o descanso na varanda) suspendem a urgência dramática e realocam a atenção. Em termos estéticos, o ma impede que o mito seja mera engrenagem narrativa; ele o instala como experiência.

Em termos políticos, o ma é antídoto contra o tempo acelerado do trabalho e do consumo. Napier lê essas pausas como convites à “rememoração cultural”, um retorno a ritmos pré-industriais inscritos no corpo.

A técnica anima essa ética. Lamarre observa como os planos de profundidade, a sobreposição de camadas e a fluidez das metamorfoses constroem uma “materialidade do ar”, uma fenomenologia do sopro. A consequência é que o sobrenatural não rompe o real; ele se infiltra, se condensa, evapora. A filosofia xintoísta transparece não só no tema, mas na textura da imagem.

A Viagem de Chihiro | Créditos: Studio Ghibli

Comparações com o cinema contemporâneo

A estratégia mitopoética de Chihiro encontra ecos em outros filmes japoneses da virada do século. Em Your Name (2016), de Makoto Shinkai, o fio (musubi) e o ritual do kagura operam uma cosmologia de encontro e catástrofe, aproximando a tradição a um imaginário de desastre contemporâneo.

Em Weathering With You (2019), a prece pela chuva é mediada por plataformas digitais, e a divindade do clima é inseparável de debates urbanos. Noutro registro, Kwaidan recompõe contos de Lafcadio Hearn como teatro pictórico da culpa e do desejo. Em todos, o mito é ferramenta para reconectar corpos e história, não ornamento.

Essa constelação confirma uma tese: o cinema japonês reatualiza a mitologia a partir de dilemas concretos de sua modernidade, como o pós-guerra, a urbanização, a crise ecológica, a pressão escolar e laboral, a precarização. Em vez de explicar “o Japão” por exotismo, esses filmes tornam visível a experiência global da modernidade, usando cosmologias locais como lentes críticas.

Mãos sujas, pés limpos

A pedagogia do trabalho em Chihiro é inseparável da pedagogia do cuidado. Lin, Kamaji, Zeniba e o próprio Haku encarnam formas de comunidade que não se confundem com família nuclear nem com empresa. A cozinhas, os corredores, as caldeiras (espaços baixos do cinema) são laboratórios éticos.

A heroína aprende a pedir ajuda, a negociar, a limpar, a cozinhar; aprende que trabalho não é punição, mas vínculo com o mundo. É nesse “baixo contínuo” que a fantasia, no sentido de Jackson, torna-se subversiva: ela reatribui valor ao que a lógica do espetáculo invisibiliza.

Há também uma política do corpo. Chihiro começa trôpega, lenta, chorosa; termina firme, respirando fundo, correndo em passo próprio. A mudança é discreta e radical. Não há armadura, espada, tiara mágica: há um laço de cabelo tecido coletivamente, presente que materializa a ideia campbelliana de “auxílios sobrenaturais” como redes de cuidado.

O retorno da família ao carro, com o capim alto cobrindo pneus como se anos tivessem passado, condensa a dimensão temporal da jornada. Estamos diante do que Eco chamaria de “final aberto programado”: nada desmente a aventura, nada a prova.

O espectador guarda um resíduo — memória, saudade, atenção. É esse resto que reconfigura a relação com o mundo “real”: comer com menos pressa, olhar rios como criaturas, desconfiar de contratos que exigem o nome inteiro. O mito, aqui, não oferece doutrina; oferece treino.

Em síntese, A Viagem de Chihiro exemplifica uma operação ampla do cinema japonês: ativar repertórios míticos (xintoístas, folclóricos, literários) como dispositivos de pensamento sobre a sociedade moderna. Não se trata de celebração nostálgica nem de exotismo turístico, mas de uma ética da hospitalidade, ao deuses, aos estranhos, aos desejos sem rosto e às memórias sufocadas, capaz de devolver o nome às coisas e às pessoas.

A Viagem de Chihiro | Créditos: Studio Ghibli

Mitopoéticas do trabalho e do cuidado

Se tomamos a modernidade como um processo de desencantamento, Miyazaki e seus interlocutores mostram um caminho alternativo: o reencantamento crítico. Em Chihiro, mitos não negam infraestrutura; eles a iluminam.

A casa de banhos é um modelo em miniatura de uma sociedade de serviços que, entre cheiros e contabilidade, administra a vida. O rio entupido é diagnóstico da crise ecológica. O contrato que troca nome por salário é lição sobre identidades capturadas. E, no entanto, tudo isso é regido por uma imaginação que insiste na possibilidade de cuidado e de pausa.

Do ponto de vista teórico, a hesitação do fantástico (Todorov) e a subversão da fantasia (Jackson) articulam-se com a abertura interpretativa (Eco) para produzir uma experiência estética que é, também, pedagógica e política. Chihiro nos treina a notar presenças, a ouvir silêncios, a cuidar de deuses cansados e, por extensão, de pessoas cansadas.

matheusprado.maori@gmail.com | Web |  + posts

Matheus Prado é professor, escritor, cineasta e crítico de cinema. Atualmente cursa um mestrado e Letras, com foco em Literatura. Acredita que a vida é um mar profundo e que devemos nos aventurar além da superfície. Escreveu e dirigiu dois longas-metragens e vários curtas.

Referências Bibliográficas

ASHKENAZI, Michael. Handbook of Japanese Mythology. Santa Barbara: ABC-CLIO, 2003.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 2007.
ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1971.
FOSTER, Michael Dylan. Pandemonium and Parade: Japanese Monsters and the Culture of Yōkai. Berkeley: University of California Press, 2009.
HARDARE, Helen. Shinto: A History. Oxford: Oxford University Press, 2017.
HEARN, Lafcadio. Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things. Boston: Houghton Mifflin, 1904.
JACKSON, Rosemary. Fantasy: The Literature of Subversion. London: Routledge, 1981.
LAMARRE, Thomas. The Anime Machine: A Media Theory of Animation. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009.
MENDLESOHN, Farah. Rhetorics of Fantasy. Middletown: Wesleyan University Press, 2008.
MIYAZAKI, Hayao. Starting Point: 1979–1996. San Francisco: VIZ Media, 2009.
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NAPIER, Susan J. Anime from Akira to Howl’s Moving Castle: Experiencing Contemporary Japanese Animation. New York: Palgrave Macmillan, 2005.
NAPIER, Susan J. Miyazakiworld: A Life in Art. New Haven: Yale University Press, 2018.
ONO, Sokyo. Shinto: The Kami Way. Rutland: Tuttle, 1962.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.

Filmografia citada

KOBAYASHI, Masaki (Dir.). Kwaidan. Japão: Toho, 1964.
MIYAZAKI, Hayao (Dir.). A Viagem de Chihiro (Spirited Away). Japão: Studio Ghibli, 2001.
MIYAZAKI, Hayao (Dir.). Princesa Mononoke. Japão: Studio Ghibli, 1997.
MIZOGUCHI, Kenji (Dir.). Ugetsu. Japão: Daiei, 1953.
HONDA, Ishirō (Dir.). Godzilla. Japão: Toho, 1954.
SHINKAI, Makoto (Dir.). Your Name. Japão: CoMix Wave Films, 2016.
SHINKAI, Makoto (Dir.). Weathering With You. Japão: CoMix Wave Films, 2019.
SHINDŌ, Kaneto (Dir.). Onibaba. Japão: Toho, 1964.

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