Os Dornier de Lovecraft: conheça a aviação real por trás do conto “Nas Montanhas da Loucura”

Como H. P. Lovecraft transformou o hidroavião Dornier Do-J Wal em uma máquina quase futurista e por que sua descrição continua fascinando leitores, aeronáuticos e estudiosos do Fantástico.

Ao iniciar a leitura de Nas Montanhas da Loucura, de H. P. Lovecraft, um detalhe chamou minha atenção de imediato: os aviões Dornier. O conto foi escrito em 1931, quando a aviação já se encontrava em desenvolvimento significativo, mas ainda longe do que conhecemos hoje.

Mesmo assim, as descrições do autor são tão vívidas e tecnicamente verossímeis que despertam a sensação de que aqueles modelos eram avançados demais para a época, mesmo para uma obra de ficção.

Lovecraft, apesar de ser lembrado principalmente como um mestre do horror cósmico, também era um leitor apaixonado por ciência e tecnologia. Seu entusiasmo pela ficção científica, que se torna visível em contos como A Cor que Caiu do Espaço, transparece em cada detalhe técnico apresentado na narrativa.

Como alguém que, apesar do medo de voar, é entusiasta da aviação, decidi investigar se os aviões descritos pelo autor eram reais ou invenções narrativas. As descobertas foram tão interessantes que merecem ser compartilhadas.

Logo nos primeiros parágrafos, Lovecraft descreve sua frota aérea:

Quatro grandes aviões Dornier, desenvolvidos especialmente para as tremendas altitudes de voo necessárias no platô antártico com dispositivos adicionais para aquecimento de combustível e equipamentos de rápida ignição criados por Pabodie, poderiam transportar nossa expedição inteira de uma base nos limites da grande barreira de gelo até vários pontos internos adequados, e a partir daí uma cota suficiente de cães nos bastaria.

O autor não cita o modelo, apenas a marca. Entretanto, segundo Jason C. Eckhardt no artigo Behind the Madness: Lovecraft and the Antarctic in 1930 (1987), é provável que Lovecraft tenha se inspirado em uma versão modificada do hidroavião alemão Dornier Do-J Wal.

A Dornier Flugzeugwerke, fundada em 1914, foi uma das empresas aeronáuticas mais influentes entre as décadas de 1920 e 1930. Especializou-se em grandes hidroaviões metálicos, como o Wal e o monumental Dornier Do X. Em 1996, a empresa seria adquirida pela americana Fairchild Aircraft; em 2002, a Fairchild Dornier declararia falência.

O modelo Dornier Do-J Wal era um hidroavião com duas hélices de quatro pás e o fato de pousar e decolar na água justifica o nome: Wal significa baleia em alemão. Ao todo, foram fabricados apenas algo entre 250 e 300 aeronaves deste modelo e, apesar de ser alemão, a maior parte das unidades foi construída e montada na Itália. O primeiro voo do Dornier Do-J Wal ocorreu no dia 6 de novembro de 1922.

O avião Grönland Wal (Baleia da Groenlândia), de Wolfgang von Gronau. Uma aeronave robusta, embora não particularmente confortável, para exploração de longa distância. | Créditos: U.S. Army Air Corps

A primeira grande aventura aérea no Ártico

O Wal tornou-se célebre graças ao explorador norueguês Roald Amundsen, o primeiro ser humano a alcançar tanto o Polo Sul (1911) quanto o Polo Norte (1926). Antes do histórico voo de dirigível de 1926, Amundsen organizou, em 1925, a primeira expedição aérea ao Ártico, utilizando dois Dorniers Do-J Wal adaptados.

A jornada foi turbulenta desde o início: problemas mecânicos, motores superaquecidos, perda anormal de combustível e, finalmente, um pouso forçado no gelo às 5h da manhã de 22 de maio.

Os danos foram severos. Rebites se soltaram, abrindo um buraco no casco de um dos aviões, rapidamente preenchido por água gelada. Após dias de tentativas, a tripulação percebeu que apenas um dos aviões poderia ser retomado ao ar. Eles construíram manualmente uma rampa de quase um quilômetro sobre o gelo para tentar decolar — falharam nos dias 1º, 2 e 6 de junho.

Somente em 15 de junho de 1925 conseguiram alçar voo. A expedição não atingiu o Polo Norte, mas o Dornier Wal estabeleceu um recorde de distância rumo ao extremo norte do planeta.

Montagem dos hidroaviões Dornier-Wal N24 e N25 | Créditos: Reprodução

O voo que inspirou Lovecraft

Se existe um nome que possivelmente influenciou Lovecraft, ele é Hans Wolfgang von Gronau. Em 26 de agosto de 1930, o piloto alemão realizou um voo transatlântico histórico utilizando um Dornier Do-J Wal, decolando da Alemanha, passando pela Islândia e Groenlândia, até pousar em Nova York.

O detalhe mais fascinante: Gronau utilizou o mesmo avião, prefixo D-1422, que havia sobrevivido à expedição de Amundsen.

O feito ganhou enorme repercussão internacional. Como Nas Montanhas da Loucura foi escrito entre fevereiro e março de 1931, é muito provável que Lovecraft tenha sido influenciado pelo sucesso do piloto, sobretudo considerando seu hábito de acompanhar notícias sobre ciência, tecnologia e exploração.

O avião de Wolfgang von Gronau durante o voo | Créditos: U.S. Army Air Corps

As diferenças entre o Wal real e o Dornier lovecraftiano

Os aviões da ficção apresentam diferenças marcantes em relação ao modelo real:

  • Autonomia e altitude: Lovecraft descreve aeronaves capazes de alcançar 24.000 pés (cerca de 7,3 km). O Do-J Wal real alcançava no máximo metade disso.
  • Cabine fechada: Os Wals históricos possuíam cockpits abertos. Em Lovecraft, a cabine é totalmente fechada, oferecendo maior conforto e proteção.
  • Estrutura e materiais: A versão lovecraftiana possui seções feitas de alumínio — mais leve do que o aço usado no Wal real — e asas ampliadas.
  • Tecnologia adicional: Lovecraft menciona sistemas de aquecimento de combustível e ignição avançada, atribuídos ao fictício professor Frank Pabodie. Entretanto, os Wals reais já possuíam aquecedores internos para evitar congelamento.
  • Motores: Os Dorniers do mundo real eram equipados com motores Rolls-Royce de menor potência, muito diferentes dos robustos motores descritos na obra.

Em síntese, Lovecraft parte de uma base real, mas a recria com liberdade especulativa, aproximando sua aviação da ficção científica.

O Dornier Wal no Brasil

O Dornier Wal também marcou presença na história da aviação brasileira. A extinta VARIG, fundada em 1927 pelo alemão Otto Ernst Meyer, utilizou um Wal como sua primeira aeronave significativa, batizada de Atlântico.

O avião foi adquirido após um acordo com a companhia alemã Condor Syndikat, que recebeu 21% das ações da VARIG em troca da aeronave. O Atlântico possuía um piloto-mecânico capaz de realizar reparos em pleno voo — e, como não havia cabine fechada, ambos os tripulantes enfrentavam longas jornadas expostos ao vento e ao frio, protegidos por casacos pesados, capacetes e óculos de couro.

O Atlântico operou até 1933, quando foi desmontado no Rio de Janeiro e vendido como sucata.

O Dornier Wal também marcou presença na história da aviação brasileira | Créditos: VARIG

Os aviões de Nas Montanhas da Loucura existiram, ao menos como ponto de partida. Lovecraft se inspirou em tecnologias reais e as projetou para um futuro possível, algo que somente se concretizaria anos mais tarde com aeronaves mais potentes e adaptáveis ao clima polar.

O autor, apesar de seu conhecido conservadorismo e das limitações de sua época, demonstrava fascinação genuína por ciência, astronomia e avanços tecnológicos. Cresceu cercado por livros e periódicos científicos, e isso moldou profundamente sua imaginação.

Reler hoje suas descrições aeronáuticas, tão modernas para 1931, lembra-nos de um ponto essencial: as explorações, sejam na Antártida ou no espaço, não são desperdícios de recursos, mas motores de inovação. Tecnologias cotidianas como o GPS nasceram desse impulso humano de ampliar fronteiras.

E talvez seja por isso que Lovecraft continue a nos intrigar: ele sabia transformar ciência real em mito, engenharia em maravilhamento, um feito capaz de fascinar leitores quase um século depois.

matheusprado.maori@gmail.com | Web |  + posts

Matheus Prado é professor, escritor, cineasta e crítico de cinema. Atualmente cursa um mestrado e Letras, com foco em Literatura. Acredita que a vida é um mar profundo e que devemos nos aventurar além da superfície. Escreveu e dirigiu dois longas-metragens e vários curtas.

Referências Bibliográficas

ARCHIVE. Lovecraft Studies – Behind the Madness: Lovecraft and the Antarctic in 1930. Disponível em: https://abre.ai/oche/ Acesso em: 1 dez. 2025.
AIR AND SPACE MUSEUM. Wolfgang von Gronau and His Greenland “Whales”. Disponível em: https://abre.ai/ochh/ Acesso em: 1 dez. 2025.
HISTORY NET. Roald Amundsen and the 1925 North Pole Expedition. Disponível em: https://abre.ai/ochj/ Acesso em: 1 dez. 2025.
PROPNOMICON. The Plane That Inspired At the Mountains of Madness. Disponível em: https://abre.ai/ochk/ Acesso em: 1 dez. 2025.
BRITANNICA. Roald Amundsen. Disponível em: https://abre.ai/ochl/ Acesso em: 1 dez. 2025.
REDDIT – ASK HISTORIANS. H. P. Lovecraft’s At the Mountains of Madness. Disponível em: https://abre.ai/ochm/ Acesso em: 1 dez. 2025.
VARIG AIRLINES. Atlântico. Disponível em: https://abre.ai/ochn/ Acesso em: 1 dez. 2025.

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