A literatura fantástica se constitui como um espaço privilegiado para a construção de mundos outros, nos quais o real se encontra tensionado por elementos sobrenaturais, míticos ou imaginários. Dentro desse amplo campo, o Maravilhoso ocupa uma posição singular: nele, o sobrenatural não é questionado, mas aceito como parte orgânica da realidade narrativa.
Esse tipo de estrutura, tal como proposto por Tzvetan Todorov (1975), se diferencia do fantástico puro ao não provocar hesitação no leitor ou nas personagens frente ao estranho. Dois autores que souberam, cada um a seu modo, articular esse regime de sentido foram J.R.R. Tolkien, na Inglaterra, e Monteiro Lobato, no Brasil.
Embora pertençam a contextos históricos, culturais e linguísticos distintos, ambos os escritores construíram universos ficcionais autônomos que operam segundo a lógica do maravilhoso. Em Tolkien, o legendário da Terra-média é erguido com base em estruturas mitológicas arcaicas, enquanto em Lobato, o Sítio do Picapau Amarelo reconfigura o folclore e a cultura popular brasileira em um espaço lúdico e filosófico.
Este artigo propõe uma comparação entre esses dois autores, explorando como cada um elaborou uma poética do maravilhoso a partir de suas tradições culturais, intenções narrativas e concepções de infância, mitologia e realidade.
Fundamentos do Maravilhoso em Tolkien
A obra de Tolkien é profundamente marcada por sua formação filológica e seu interesse pela mitopoese. Em seu célebre ensaio Sobre Histórias de Fadas (1939), o autor define os contos de fadas como narrativas que ocorrem no Secondary World, um mundo que deve ser internamente coerente e no qual o maravilhoso é uma premissa ontológica.
A Terra-média, cenário de obras como O Senhor dos Anéis e O Silmarillion, é o ápice dessa concepção: um universo completo, com línguas, histórias, raças, mitos e cosmologia próprios.
Em Tolkien, o maravilhoso se realiza pela criação de um mundo onde o sobrenatural é parte orgânica da realidade. Dragões, elfos, anéis mágicos e deuses não surpreendem ou provocam dúvida nas personagens, mas são elementos naturais daquele cosmos. Segundo Farah Mendlesohn (2008), essa forma de narrativa se aproxima do “maravilhoso imersivo”, no qual o leitor é transportado para um universo que funciona por outras leis, mas é internamente lógico.
Além disso, Tolkien se vale do que Joseph Campbell (1949) denominou “jornada do herói”, estruturando suas tramas em torno de arquétipos míticos. A função do mito em sua obra é dupla: restaurar um senso de maravilhamento diante da existência e resgatar uma visão sacralizada do mundo, frente ao desencantamento moderno.
O Maravilhoso Lúdico de Monteiro Lobato
No Brasil, Monteiro Lobato inaugura uma forma singular de literatura infantojuvenil que também opera dentro do Maravilhoso, mas por caminhos distintos. O Sítio do Picapau Amarelo é um espaço mágico, mas enraizado na cultura rural brasileira, povoado por personagens folclóricos (como o Saci e a Cuca), figuras da literatura universal (como Dom Quixote e a Branca de Neve) e invenções próprias (como a boneca falante Emília).
Ao contrário de Tolkien, cuja linguagem tende ao épico e ao solene, Lobato adota um tom coloquial e irônico. O maravilhoso em sua obra é permeado pela metalinguagem e pelo humor, características que o aproximam de uma tradição oral e carnavalesca, no sentido bakhtiniano.
Como destaca Marisa Lajolo (1983), o Sítio é um espaço onde o impossível é cotidiano, mas sempre mediado pela imaginação infantil e pelo saber adulto, representado por Dona Benta.
Embora menos sistemático do que Tolkien na criação de mundos, Lobato foi igualmente inovador ao integrar diferentes camadas culturais em sua narrativa. Em O Minotauro (1939), por exemplo, Emília e Narizinho viajam à Grécia antiga para conhecer os mitos clássicos. Já em Reinações de Narizinho (1931), as personagens transitam livremente entre o real e o fantástico, mostrando que, no Sítio, o maravilhoso não é um “outro mundo”, mas uma extensão mágica do mundo cotidiano.
Maravilhamento e Projeto Cultural
Apesar das diferenças formais e contextuais, Tolkien e Lobato compartilham uma intenção comum: reencantar o mundo por meio da literatura. Ambos percebem o imaginário como um instrumento de resistência cultural: no caso de Tolkien, à racionalidade secularizante e à devastação da modernidade; no de Lobato, ao atraso educacional brasileiro e à desvalorização do folclore nacional.
Do ponto de vista estrutural, Tolkien opta por uma narrativa fechada, de vocação épica e coesão mitológica. Lobato, ao contrário, constrói um sistema aberto, rizomático, que se alimenta da intertextualidade e da oralidade. Segundo Rosemary Jackson (1981), o fantástico pode funcionar como crítica ao real ou como fuga dele.
Tolkien parece oscilar entre as duas funções: sua obra oferece escapismo (escape), mas também redenção (eucatástrofe), o momento em que o bem triunfa inesperadamente, restaurando a ordem. Lobato, por sua vez, critica as limitações do mundo real com humor e ironia, propondo a imaginação como ferramenta pedagógica e libertária.
Há também uma diferença na relação com o leitor. Tolkien exige imersão e suspensão da descrença para entrar em seu mundo secundário. Lobato, por sua vez, quebra a quarta parede com frequência, dialogando com o leitor e assumindo a artificialidade da narrativa. Emília, por exemplo, questiona o autor, reescreve histórias e subverte os papéis tradicionais, antecipando práticas pós-modernas de narrativa.
Considerações Finais
Tolkien e Lobato são, cada um a seu modo, arquitetos do maravilhoso. O primeiro, por meio de uma construção mitopoética rigorosa, que visa a restaurar o mito como fundamento da experiência humana; o segundo, por meio da bricolagem cultural e da ludicidade, que transforma o cotidiano em aventura.
Ambos concebem a infância como território privilegiado do encantamento, mas a mobilizam com diferentes propósitos: enquanto Tolkien busca a elevação mítica, Lobato aposta na subversão e na aprendizagem.
Essa comparação permite repensar os modos de produção do maravilhoso em contextos distintos — o europeu e o latino-americano — e revela como o fantástico pode ser ao mesmo tempo universal e situado.
A poética tolkieniana, com sua ambição épica e atemporal, contrasta com a estética lobatiana, enraizada no tempo e no espaço brasileiro. No entanto, ambos se encontram no desejo de oferecer aos leitores, sejam crianças ou adultos, uma nova forma de ver o mundo: mais rica, mais complexa e, sobretudo, mais encantada.
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