O Fantástico de Machado de Assis: como o autor desconstrói a razão e transforma o insólito em crítica

Longe de limitar-se ao realismo psicológico, Machado de Assis usa o fantástico como ferramenta para investigar a mente humana, subverter a lógica racional e revelar os paradoxos da identidade moderna em contos que desestabilizam o leitor.

A crítica literária brasileira consagrou Machado de Assis como o grande nome do realismo, do romance de costumes e da introspecção moral. Obras como Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba fixaram a imagem do autor como um observador irônico e racionalista da sociedade oitocentista.

Contudo, sob essa superfície de lucidez e ceticismo, esconde-se um Machado menos conhecido: o Machado do Fantástico, que usa o insólito, o sonho e a hesitação para investigar o abismo da consciência humana.

Retrato de Machado de Assis | Créditos: Marc Ferrez

O Fantástico, segundo Tzvetan Todorov (1970), nasce da hesitação do leitor (e frequentemente das personagens) entre uma explicação racional e uma explicação sobrenatural para os acontecimentos narrados. Em Machado, essa ambiguidade é constante: seus contos e romances exploram limites difusos entre o real e o imaginário, o corpo e o espírito, a sanidade e a loucura.

A dúvida é o terreno natural de sua ficção. Mais do que fenômenos sobrenaturais, o fantástico machadiano é uma experiência de desestabilização da razão, um espelho trincado da consciência moderna.

Este artigo busca revelar esse outro Machado, o escritor que, ao contrário do que muitos supõem, não rejeita o impossível, mas o incorpora como instrumento filosófico. Através de uma leitura crítica de contos como O espelho, O alienista, A causa secreta e O enfermeiro, propõe-se compreender como o autor transforma o fantástico em metáfora da subjetividade e crítica do racionalismo positivista que dominava o pensamento de seu tempo.

Razão e delírio nos contos machadianos

Machado de Assis raramente recorre ao sobrenatural explícito. Seu fantástico é sutil, interior, psicológico, como uma força que emerge do próprio processo de pensar e perceber o mundo. Em O espelho (1882), o narrador propõe uma teoria sobre a “alma exterior”, segundo a qual cada pessoa possuiria duas almas: uma interna e outra dependente do olhar alheio.

Quando o protagonista perde o uniforme de alferes, símbolo de sua identidade social, ele literalmente deixa de se reconhecer no espelho. A narrativa oscila entre o ensaio filosófico e o relato de uma experiência inquietante, ambígua o bastante para não sabermos se houve um delírio, uma possessão ou uma epifania.

É aqui que o conceito todoroviano de hesitação se realiza com perfeição: O espelho situa-se exatamente entre o Estranho (explicável psicologicamente) e o Maravilhoso (inexplicável racionalmente). Machado, contudo, não deseja resolver a dúvida, mas a cultiva. A incerteza se torna um modo de conhecimento.

O fantástico é epistemológico, não apenas narrativo: ele revela a precariedade do eu e o caráter ilusório das identidades humanas.

Essa dimensão reaparece em O alienista (1882), sátira sobre a racionalidade científica. O Dr. Simão Bacamarte, obcecado em definir a linha entre a sanidade e a loucura, acaba internando toda a população de Itaguaí. Ao final, o próprio médico se enclausura voluntariamente, incapaz de decidir quem é realmente louco.

Aqui, o fantástico se apresenta como paradoxo lógico: a razão levada ao extremo da insanidade. A loucura se torna o novo normal, e a normalidade, um delírio social. Machado antecipa, de modo irônico, a crítica foucaultiana à racionalidade ocidental.

Já em A causa secreta (1885), o fantástico assume contornos mais sombrios. O personagem Fortunato sente prazer no sofrimento alheio; ele se excita ao observar a dor de um rato que tortura. Nada de sobrenatural acontece, mas a narrativa adquire uma atmosfera macabra, quase gótica, em que o horror moral e psicológico substitui o elemento fantástico tradicional.

É o Estranho freudiano em ação — aquilo que deveria permanecer oculto, mas retorna de forma inquietante. Como observa Freud (1919) em O Estranho (Das Unheimliche), o medo mais profundo nasce do familiar tornado perturbador. Assim, Machado não escreve contos de fantasmas, mas de fantasmas interiores.

Machado de Assis em sua provável última foto de estúdio, aos 67 anos de idade | Créditos: Estúdio Luiz Musso & Cia

O insólito filosófico

Se o Fantástico clássico europeu (como em Hoffmann ou Poe) depende de fenômenos externos ao natural, o de Machado nasce da instabilidade da razão. Sua estratégia narrativa é a ironia, entendida aqui não como humor, mas como ruptura epistemológica: uma forma de desmontar as certezas do leitor.

O narrador machadiano é frequentemente pouco confiável, os relatos são ambíguos, e as vozes narrativas confundem verdade e alucinação.

Em O enfermeiro, por exemplo, o protagonista mata acidentalmente o patrão violento que cuidava. Mas, em vez de culpa, sente um alívio místico e uma justificativa moral para o crime. A tensão entre a confissão e o autoengano gera um fantástico ético, em que a consciência do personagem cria sua própria realidade. A ironia, portanto, não nega o fantástico, mas o reinterpreta como um estado filosófico: a incapacidade de distinguir o real do imaginário.

De certo modo, o fantástico machadiano antecipa a noção de “obra aberta” de Umberto Eco (1962), na qual o texto não oferece interpretações fechadas, mas espaços de ambiguidade que exigem a participação ativa do leitor. Em Machado, o leitor é compelido a decidir se os eventos são reais, simbólicos ou delírios. Essa abertura é o cerne do fantástico moderno: a incerteza como estética.

Rosemary Jackson (1981), ao definir o fantástico como literatura da subversão, argumenta que ele revela “aquilo que é reprimido pela ordem dominante” — desejos, medos, impulsos inconscientes. Machado, com sua ironia fina e seu ceticismo corrosivo, desvela o lado oculto da moralidade burguesa, o inconsciente de uma sociedade que se quer racional. Seus contos fantásticos são, nesse sentido, críticas metafísicas travestidas de anedotas.

O tempo do impossível

É importante compreender que o fantástico em Machado surge num Brasil em transição: entre o Romantismo e o Realismo, entre o Império e a República, entre a escravidão e o liberalismo moderno. Em meio a essa crise de paradigmas, o autor encontra no insólito uma forma de expor o absurdo da razão positivista.

Seu ceticismo não é apenas filosófico, mas histórico: ele percebe que o discurso racional de progresso convive com as irracionalidades do preconceito, da desigualdade e da superstição.

Enquanto o Romantismo brasileiro explorava o maravilhoso mítico (indígenas, lendas, religiosidade), Machado volta o olhar para o sobrenatural cotidiano — a loucura, a alucinação, a perda de identidade. O Fantástico, em suas mãos, deixa de ser evasão e se torna instrumento de crítica. Em vez de criar monstros e fantasmas, ele mostra o monstro na alma humana e o fantasma no espelho da razão.

Seu contemporâneo Edgar Allan Poe o influencia não pela estética do terror, mas pela psicologia do insólito. Ambos exploram o deslizamento da consciência, o delírio racional e o prazer pelo abismo. Todavia, enquanto Poe dramatiza o horror, Machado o intelectualiza, transformando-o em reflexão moral.

O legado do fantástico machadiano

O impacto do Machado Fantástico é profundo e, curiosamente, pouco reconhecido. Autores como Murilo Rubião, José J. Veiga e Campos de Carvalho herdam dele a noção de que o insólito pode nascer da normalidade e que o absurdo é parte do cotidiano. Em Rubião, a metamorfose e o absurdo têm a clareza onírica de um sonho lúcido — eco distante de O espelho. Em José J. Veiga, o estranho emerge de comunidades isoladas e regimes autoritários, retomando a crítica social que Machado insinuava sob a máscara da loucura.

Mais tarde, autores como Moacyr Scliar e Cristina Judar continuariam a explorar esse fantástico psicológico e alegórico, que não depende de feitiços, mas de paradoxos existenciais. No século XXI, a influência de Machado reaparece inclusive em narrativas audiovisuais e games brasileiros que exploram o híbrido entre o real e o mental, retomando o dilema do espelho — quem somos quando perdemos nosso reflexo?

Assim, ao lado de Poe, Kafka e Borges, Machado de Assis deve ser reconhecido como um dos fundadores do fantástico filosófico — aquele que não precisa de sobrenatural para perturbar, mas apenas de uma mente humana diante do espelho de si mesma.

Dessa forma, o fantástico machadiano não é feito de monstros, mas de idéias inquietas. Ele habita o ponto em que o pensamento se volta contra si mesmo, onde o realismo se desfaz em vertigem. Machado antecipa tanto a psicanálise quanto a narrativa moderna ao explorar o delírio da razão. Seu fantástico é a expressão estética de uma consciência dividida, suspensa entre a fé e o ceticismo, o sonho e o juízo, a sanidade e o espelho vazio.

Reconhecer esse lado é redescobrir um autor ainda mais vasto: um filósofo do impossível, um realista do invisível. Machado não escreveu contos de fadas, mas contos de dúvida. E é justamente essa dúvida, esse Fantástico da Hesitação, que o inscreve, não apenas como o maior escritor do Brasil, mas como um dos grandes mestres universais do estranho.

matheusprado.maori@gmail.com | Web |  + posts

Matheus Prado é professor, escritor, cineasta e crítico de cinema. Atualmente cursa um mestrado e Letras, com foco em Literatura. Acredita que a vida é um mar profundo e que devemos nos aventurar além da superfície. Escreveu e dirigiu dois longas-metragens e vários curtas.

Referências Bibliográficas

ASSIS, Machado de. Contos escolhidos. Rio de Janeiro: Garnier, 1906.
BOSI, Alfredo. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2003.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1991.
FREUD, Sigmund. O estranho (Das Unheimliche). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
JACKSON, Rosemary. Fantasy: The Literature of Subversion. London: Methuen, 1981.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.

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