Harry Potter e o Contrato do Invisível: como Hogwarts opera como sistema de poder e dominação simbólica

Este artigo propõe uma abordagem crítica da série Harry Potter a partir da Teoria do Fantástico (Tzvetan Todorov, Rosemary Jackson) e da Sociologia da Magia (Marcel Mauss, Pierre Bourdieu), para sugerir que o universo bruxo funciona com base em um “contrato do invisível”: um acordo tácito onde o sobrenatural, apesar de naturalizado, sustenta um sistema de poder simbólico. A magia, nesse contexto, encanta ao mesmo tempo em que governa.

Desde seu lançamento, a série Harry Potter, de J.K. Rowling, conquistou um lugar de destaque no imaginário cultural global. Embora frequentemente classificada como literatura infantojuvenil de fantasia, a saga apresenta um universo ficcional onde o Maravilhoso é integrado à ordem do mundo, não como um evento isolado ou estranho, mas como uma realidade normativa e institucionalizada.

Hogwarts, a escola de magia que forma bruxos e bruxas, não é apenas um espaço de aprendizado mágico, mas também um dispositivo simbólico de controle, seleção e reprodução de poder.

Com base nessa ideia, este texto propõe uma leitura crítica da série Harry Potter à luz da teoria do fantástico (Todorov, Jackson) e da sociologia da magia (Mauss, Bourdieu), argumentando que o mundo mágico opera segundo um Contrato do Invisível:

Um acordo tácito entre os personagens e a ordem mágica que rege suas vidas, onde o sobrenatural é naturalizado, mas também hierarquizado e politicamente instrumentalizado. Ao analisar a estrutura social do mundo bruxo, suas instituições, discursos e exclusões, busca-se revelar como o maravilhoso não apenas encanta, mas também governa.

I. O Maravilhoso como Ordem

No universo de Harry Potter, a magia é um elemento constitutivo da realidade. Diferentemente do fantástico puro, que gera hesitação entre o natural e o sobrenatural (Todorov, 1975), a saga de Rowling pertence ao domínio do maravilhoso puro, conforme tipologia de Farah Mendlesohn (2008): o leitor entra em um mundo onde o mágico é pressuposto, aceito e institucionalizado.

Esse mundo é regido por um sistema mágico-jurídico próprio, com leis, ministérios, escolas, prisões e bancos, todos operando com base em normas mágicas. O Ministério da Magia regula o uso de feitiços, define o que é considerado arte das trevas e fiscaliza a relação dos bruxos com os trouxas (não-mágicos).

Assim, a magia não é apenas uma faculdade individual, mas um aparato estatal e ideológico, que impõe limites, distribui privilégios e define identidades.

Como destacou Rosemary Jackson (1981), o fantástico pode revelar as tensões ocultas de uma sociedade. Em Harry Potter, a magia evidencia as estruturas sociais e políticas que operam no invisível — daí o conceito de Contrato do Invisível: os personagens aceitam viver sob regras mágicas que não são debatidas abertamente, mas moldam toda a sua experiência do mundo.

II. Hogwarts: o dispositivo disciplinar do maravilhoso

Hogwarts é o núcleo simbólico da série. Muito mais do que um cenário, a escola é uma máquina formadora de subjetividades mágicas, onde se ensina não apenas feitiços, mas também lealdade institucional, conformidade comportamental e distinção social.

Inspirando-se em Foucault (1975), pode-se ler Hogwarts como um dispositivo disciplinar fantástico, onde o conhecimento mágico é ao mesmo tempo ferramenta de libertação e de controle.

A seleção das casas — Grifinória, Sonserina, Corvinal, Lufa-Lufa — cria divisões simbólicas e rivalidades, frequentemente baseadas em estereótipos e expectativas morais. A Sonserina, por exemplo, é associada à ambição e à origem “sangue-puro”, enquanto a Grifinória representa coragem e nobreza. Essa categorização inicial, feita por um chapéu mágico que lê a mente dos alunos, constitui um rito de classificação duradouro, que molda trajetórias, afetos e alianças, numa espécie de “capital mágico” (Bourdieu, 1980).

O ensino em Hogwarts também reflete uma hierarquia epistemológica: há estudos de magias que são considerados nobres (como Defesa Contra as Artes das Trevas) e outros que são menores (como Trato das Criaturas Mágicas).

Além disso, certos conhecimentos são proibidos ou censurados, como a Magia Negra, revelando um controle simbólico sobre o saber que reflete disputas éticas e políticas dentro do mundo mágico.

III. Linhagem, Pureza e Exclusão: a ideologia do sangue

A divisão entre “sangue-puro”, “mestiço” e “nascido-trouxa” é central para a dinâmica política da série. O mundo bruxo reproduz uma ideologia aristocrática da magia, onde o poder está ligado à linhagem e à pureza do sangue mágico. Voldemort, o vilão principal da narrativa, representa o extremo dessa ideologia, propondo uma limpeza étnico-mágica e o extermínio dos considerados impuros.

No entanto, mesmo nas camadas mais progressistas da sociedade bruxa, como os professores de Hogwarts ou a Ordem da Fênix, há uma naturalização das distinções sanguíneas, ainda que moderadas. A própria existência do termo trouxa — e seu uso corrente — já pressupõe uma separação ontológica entre os seres humanos, baseada em habilidades inatas.

O sistema de magia em Harry Potter, portanto, se sustenta em uma biopolítica do fantástico: os corpos mágicos são classificados, vigiados, treinados ou eliminados, conforme seu potencial de ameaça ou utilidade.

A magia deixa de ser uma dádiva e se torna um instrumento de dominação simbólica, cuja legitimação passa pela escola, pelo ministério e pelas normas invisíveis que regem a conduta bruxa.

Considerações Finais

Ler Harry Potter a partir da Teoria do Maravilhoso e da Sociologia da Magia revela camadas profundas do texto, que vão além do encantamento narrativo. O mundo mágico construído por J.K. Rowling funciona como uma alegoria crítica das estruturas sociais modernas, ainda que disfarçada sob o manto da fantasia.

Hogwarts é, ao mesmo tempo, o lugar do aprendizado e da vigilância; a magia é tanto libertadora quanto normativa; o maravilhoso, longe de ser apenas lúdico, é também político.

Ao aceitar o Contrato do Invisível, os personagens vivem sob uma ordem mágica que reproduz desigualdades, legitima privilégios e marginaliza os desviantes. Reconhecer essas estruturas é uma forma de resistir ao encantamento ingênuo e, ao mesmo tempo, enriquecer nossa compreensão da fantasia como instrumento de crítica cultural.

Afinal, como toda boa literatura fantástica, Harry Potter nos mostra que o mundo mágico é, em última instância, um espelho do nosso.

matheusprado.maori@gmail.com | Web |  + posts

Matheus Prado é professor, escritor, cineasta e crítico de cinema. Atualmente cursa um mestrado e Letras, com foco em Literatura. Acredita que a vida é um mar profundo e que devemos nos aventurar além da superfície. Escreveu e dirigiu dois longas-metragens e vários curtas.

Referências Bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1975.
JACKSON, Rosemary. Fantasy: The Literature of Subversion. London: Methuen, 1981.
MENDLESOHN, Farah. Rhetorics of Fantasy. Middletown: Wesleyan University Press, 2008.
ROWLING, J.K. Harry Potter and the Philosopher’s Stone. London: Bloomsbury, 1997.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.

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